Só se fala em outra coisa.

Chivo Garcia
4 min readAug 15, 2023

Sou bom de acordar tarde no domingo, um dos melhores até, eu diria. Esse foi diferente, acordei cedo e o tempo passou devagar, manhoso. Geralmente meus domingos são rápidos, faz pouco dia e muita ressaca, logo é de noite e aí eu tento me manter afastado das caixas luminosas que emitem a voz do luciano huck. Coisa simples, sobrevivência.

Pro meu azar era um daqueles dias estranhos que eu não consigo comer direito, fico com fome sem vontade de comer, me sinto amarrado, fechado, acuado.

De tarde não consegui ignorar que o dia estava bonito, de ímpeto decidi caminhar e talvez ir até o mercado ver se algo me pegava a atenção, me trazia de volta a tal vontade. Cheio de gente na rua, famílias andando com filhos e cachorros.

Quando cheguei no mercado e fui entrando pelo estacionamento, quando vi o quão vazio estava me lembrei do zumzumzum da última semana que o mercado iria fechar, e de fato todo o lugar estava suspenso em uma atmosfera de partida, um lance meio rodoviária, meio velório. Pra deixar as coisas mais soturnas, uma das portas do estacionamento dá de frente para um parque com uma lagoa, e lá fora estava tudo tão verde e ensolarado, parecendo o céu das testemunhas de jeová com tigres e crianças de camisa polo. Subindo a escada rolante já não havia mais urgência no lugar.

Tomado de nostalgia fui a padaria, peguei duas coxinhas de frango com requeijão. E me entenda, eu como coxinha ali a anos, esporadicamente. Já sobrevivi a troca de várias equipes de funcionários, mas era incrível a constância com que eles sempre deixavam a coxinha gelada no meio quando esquentavam no micro-ondas. Através de anos a coxinha dali foi consistentemente péssima. E hoje, desgraçados, a coxinha estava ótima como nunca antes esteve. Como pode uma coisa dessa? Como pode vocês dificultarem tanto a nossa separação? Por Deus, o que custava fazer mais uma coxinha com o meio gelado, por que diabos aos 45 do segundo tempo, uma coxinha tão tenra e saborosa pra me torturar pra sempre com a lembrança sabendo que a vida pode ser bonita se lhe dada a chance, e assim a saudade se fazer tão eterna?

A coxinha quente me deixou com o meio gelado.

Logo antes ao esquentar o salgado a caixa me disse que era o último dia. Porra, eu imaginava que o fim estava perto, mas agora, assim, já acabou? é isso?

Outros funcionários comiam ali, uma melancolia preguiçosa se transmitia deles, aquele tipo de melancolia de último dia de escola, mas nao o último dia com todo mundo, aquele último dia que voce ficou de recuperação e só tem você e mais um bando de estranhos num lugar despovoado e silencioso que se prepara pra hibernar.

Um dia descobri que nesse muffato vendia uma marca de tequila falsificada que não vendia na maioria das outras filiais ou outras redes de mercado, um tipo de aperetivo de tequila que custava 20 mangos. Mudou o jogo. Fiz muitas margueritas dali, inúmeras vitórias, shots, amizades, arriba, a centro, a dentro, a mores.

Ja vivi tanto nesse mercado, ja fiquei horas escolhendo vinho chapado, ja vomitei no banheiro do primeiro piso, ja paguei milhares de contas na lotérica la de baixo, já comprei droga no estacionamento. Nos últimos dias tava foda, o mercado estava desleixado, não o julgo, eu também me cansei e deixei a nossa relação esfriar.

Às 15:30 lembrei que era dia dos pais. Não gosto de ser amargurado mas ultimamente a data me deixa pensativo demais. É papo de terapia, mas cada vez mais deixou de ser pra mim uma celebração da paternidade e passou a ser um dia que repenso o que é ser homem, quando penso em vários pais nossos que vieram de uma geração que se acostumou a incorporar o senso comum machista como uma forma de virtude, não conseguiram escapar do ciclo de continuar sendo repetidamente mistura de culpa com silêncio, uma vibe meio os tony soprano do terceiro mundo que nunca foram pra psicanalise. Que bando de maluco sabe… Não me admira que a gente é tudo doido. Sonhei com meu pai nas últimas semanas, não tenho mais contato, mas ainda me preocupo um tico. Lembro que num dos últimos dia dos pais juntos escrevi a ele atrás duma foto que ele foi o melhor pai que ele poderia ter sido. Tentei ser gente boa na medida do possível, mas acho que era mentira. O que mais eu podia dizer? Parabéns? Olha, não gosto de ser amargurado.

Dei uma ultima velada no cadáver ao passar pela sessão de queijos, um amigo meu adorava roubar gorgonzola dali pra fazer pizza. Fitei o gruyere lembrando dos sanduiches que ja fiz, o brie que ja se enrolou em meu macarrão, até o gouda me lembrou de noites confortáveis, de provolones esquecidos.

O silencio então foi interrompido por gritos, voltei a olhar para os entornos da padaria, e ao lado de uma ilha de doritos uma mulher gritava efusivamente:

“PORQUE NINGUEM FALA NADA? O MERCADO ESTA FECHANDO E NINGUEM FALA NADA! TA TUDO ESTRANHO! VOCES NÃO ESTÃO FALANDO NADA, O QUE ESTA ACONTECENDO COM A GENTE?”

Fiquei maravilhado. Me senti abraçado por ela, por aquele surto tão genuino. Ergui meus braços e gritei junto

SIM! SIM!

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

E então saí correndo, gritando, fugindo da morte pra vida não paguei as coxinhas.
Ao gerente do passado: bota minha divida na conta da saudade.

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