o bem e o mal em Marighella

Chivo Garcia
5 min readMay 10, 2021
A definição da Era Vargas na aula que se passa no final da década de 60, é a exata definição dada pela wikipédia em 2019 (https://pt.wikipedia.org/wiki/Era_Vargas)

Como bom revolucionário que sou, vi Marighella (2019, Wagner Moura) pirateado, mas infelizmente um aspecto do filme me frustrou um tico a experiência de assistir a esse longo filme encomendado via torrent extraviado de um site africano. Sabe aqueles momentos meio “putz, aqui forçaram um pouco”? Me coloco aqui hoje a falar sobre isso. A grosso modo o filme tem seus pilares nas figuras de Marighella (Seu Jorge) e Lúcio (Bruno Gagliasso), respectivamente o guerrilheiro comunista e o agente do DOPS, o que é um pouco problemático é que essas duas principais figuras do filme são também as duas figuras mais rasas em questão de desenvolvimento e complexidade, pois são justamente ancoradas no roteiro como um sendo o arquétipo do que é ser bom e outro do que é ser mau, todos os demais personagens gravitam em torno de um ou do outro, e quase todos esses personagens secundários tem desenvolvimentos mais satisfatórios e cativantes que esses dois, pois a eles são permitidas as flutuações de não serem 100% bons ou maus.

O filme é muito atual, mas não em um sentido geralmente usado para filmes antigos quando se diz que “ainda funcionam” ou “permanecem relevantes”, mas sim em um sentido que mesmo sendo uma biografia de um personagem que viveu na década de 60 o filme é construído de acordo com o contexto atual, e a dinâmica atual de justiça social advinda das pautas identitárias. Nesse ponto o personagem de Marighella é posto como um pensador perspicaz, um revolucionário destemido, um homem feminista, não é sujeito a vícios, meticuloso, virtuoso, maquiavélico, astuto… E durante o longa não há alterações significativas em suas características, visitamos de forma mais acentuada a humanidade de Marighella num instante de suspensão da sua racionalidade inibidora de seus sentimentos, apenas no último ato quando ocorre o encontro frustrado com seu filho na Bahia, um dos pontos altos do filme. Mas tirando isso é um personagem sem dualidades, posto moralmente acima dos demais, o que é até citado por Clara, personagem de Adriana Esteves que se agiganta toda vez que aparece na tela. Marighella é uma espécie de ubermensch da esquerda, o além homem ideal de acordo com os códigos morais de 2019 posto na década de 60 lutando contra a ditadura militar. De fato, Marighella foi sim um herói, mas a falta de humanidade e dualidades com que é retratado aqui nos tira de uma biografia dramatizada e nos coloca num cinema fantástico de esquerda que se torna cada vez mais forte e significativo no Brasil do “novo” fascismo que vivemos. Lúcio é um caso ainda mais gritante, é um vilão cartunesco de telenovela, os trejeitos que Bruno Gagliasso aplica são forçados e propositalmente grotescos mas talvez fora do tom, sim ele representa o mal e a corja mais repugnante do Brasil moderno que foram os torturadores do DOPS, ainda assim, a falta de complexidade do personagem traz contornos fantasiosos de um certo fetiche pela violência e a escabrosidade de ser cada vez mais repugnante, não sendo de uma maldade típica dos canalhas milicos mas uma maldade de Palpatine, Sauron ou qualquer outra figura fantástica de mal em carne.

Bacurau de Kleber Mendonça já era visivelmente um filme sobre como a esquerda enxerga a si própria, com seu amor pelo regionalismo revolucionário anti-imperialista agênero feminista negro e sim militante, com o senso de urgência aflorado, quase como folhetim. Marighella de Wagner Moura segue um tom parecido, é uma historia seiscentista ajustada sob a régua moral de 2019, funcionando como um olhar ao passado repaginado para surtir efeito hoje, como folhetim, como convocatória, como manifesto. O novo realismo-fantástico-de-esquerda é um ode constante ao passado para tentar dar corpo, contexto e folclore à ideia que a esquerda tem de si própria enquanto movimento e como povo, para isso talvez os filmes dessa leva façam opções de roteiro não para tornar um filme bom, mas para que seja uma peça política mais bem sucedida. Em Marighella está no vilão a suspensão de descrença. Em Bacurau a parte mais “forçada” do filme é também o vilão, os norte-americanos que caçam humanos por esporte e são sedentos por sangue de um modo um pouco surreal. Em ambos os casos os vilões são justamente versões antropomórficas do capitalismo, imperialismo e fascismo, alegorias humanas para essas forças exploratórias e cruéis que pouca humanidade tem. Em Bacurau o excesso de virtú do povoado não é tão notado pois naturalmente está distribuído entre várias pessoas, e que tem lá suas excessões como o pistoleiro Pacote, porém em Marighella se torna mais nítido o quão essa força positiva está concentrada no protagonista, mas em ambos os casos a intenção é mostrar nas virtudes do protagonista uma visão sobre o povo brasileiro, enquanto o mal são as figuras que sempre vitimaram e continuam vitimando o terceiro mundo, o bem é figurado pelo próprio povo. O movimento desse novo cinema engajado na fantasia do passado com a atualidade das novas pautas busca impor uma identidade para a esquerda, que está apoiada em uma visão positiva do povo que é construída através do confronto e libertação.

Talvez o fato de Marighella e Lúcio serem tão destoantes e não-humanos seja uma manobra de roteiro necessária para inverter uma injustiça histórica, a um foi relegado o status de bandido nefasto e a outro foi dada a anistia. Marighella é aqui inumanamente bom e virtuoso pois teve sua história forjada como um pária, Lúcio é aqui inumanamente vil e cruel pois teve sua história forjada como um herói. Entender isso não vai fazer do filme mais crível e menos espalhafatoso ver a cena de Lúcio urinando no pôster de Marighella prestes a soltar uma risada maléfica em meio as bufadas de nicotina, mas é compreensível.

Observações aleatórias:

*a entrevista com o enviado do Sartre é muito piegas kk
*humberto carrão gostoso como sempre
*a primeira meia hora e a última meia hora são excepcionais, muito, muito boas… Porém o trecho intermediário a essas duas partes depende de lapsos de brilhantismo pra se sustentar
*Herson Capri segunda atuação mais cringe do filme atrás apenas de Bru Gagliasso

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