Dor na barriga

Chivo Garcia
6 min readSep 24, 2022

Lembro desde muito cedo quando batiam palmas na frente da nossa casa pedindo por comida, ainda que também fossemos pobres pra cacete, minha mãe dizia que não se devia negar comida pois as vezes jesus se disfarçava de mendigo pra testar a nossa bondade. Ou algo do tipo. Não é uma fábula estranha às famílias pobres, e é algo que culturalmente se aprende quando não se tem muita posse, se a gente tem pouco, ainda temos algo. Tem até no final do Auto da Compadecida isso. Uma espécie de bondade irracional que contraria qualquer discurso motivacional individualista dos coachs de hoje em dia, mas que claro na época eu só concordava pq não queria ficar mal na fita com jesus, imagina, logo o filho do homem.

Essa certa bondade irracional era o compartilhamento não só da comida e da “solução” do problema, mas o compartilhar da dor. E nossa, como a gente sente dor. Tá em todo lado. Acho que uns dois invernos atrás eu passei meses alimentando um cachorro que vivia meio perdido na frente de casa do outro lado da rua onde tinha um lava jato, os antigos donos tinham vendido o ponto e deixado o cão pra trás, os novos donos não o queriam e o botaram pra fora, e ele ficou lá na frente, pra fora do portão, protegendo o lote que não deixavam ele entrar. Via da minha janela a cena e aquilo preenchia minha barriga de uma angústia tão fria, imaginava “e o que ele vai fazer no inverno?”, pra cá os invernos são brabos, gente morre na rua, cachorro também. Fiz o que pude, juntei papelão e pano, tentei criar ao lado da igreja que ficava do lado do lava jato um abrigo pro pobre; tentei procurar alguém que adotasse aquele cachorro velho; tudo que fosse pra parar de sentir aquela dor que ele compartilhava comigo, ampla, fria e desesperançosa, daquelas que acaba com o dia, daquelas que te faz dormir difícil. Ele sumiu naquele mesmo inverno, foi procurar alguma coisa no mundo. Já tive da mesma situação com outro cachorro aqui do bairro, um vira lata gigantesco meio dobberman e perneta que também foi abandonado pela antiga familia, sumiu também. Desde que eu era muito criança dormia difícil quando ficava pensando nesse tipo de sofrimento, sofrimento de bicho, sofrimento de gente também.

Teve uma vez, já meio adolescente, estava brincando com um primo quando um amigo dele mais velho disse que tinha plantado um pé de maconha na beira do rio. É claro que a gente tinha que ver. Rio Turetta, pra entrar tivemos que cortar por uma fazenda e esgueirar duns cavalos num pasto, lá no rio nem fui atrás do tal pé de maconha pois fiquei com medo de entrar na agua raivosa, tô te falando, sinto demais as coisas na minha barriga. Os meninos foram e logo voltaram, rindo meu primo disse que tinha sim o pé mas era nanico, quase nada. Na volta, cortando pelo mesmo pasto o menino mais velho, que vinha a tarde toda se mostrando com um canivete daqueles de cabo de osso disse “eu vou dar uma facada nesse cavalo”, franzi o cenho e olhei pros outros meninos que não estavam indignados como eu, eles estavam mais pra “kkk sério memo?”, eu que pouco tinha falado naquela tarde com medo de parecer mais medroso do que já estava aparentando quieto tive que falar algo pra parar aquela maluquice, mas ao mesmo tempo não adiantava eu agora aos 45' do segundo tempo ir pregar compaixão praquele jovem delinquente que estava a plantar maconha nas mananciais do oeste paranaense, nunca tinha visto criança com maconha e nem com canivete, quem dirá os dois… Então eu disse: “O cavalo é muito grande, ele não vai morrer”. O menino concordou como se tivesse recebido uma sabedoria sobre assassinatos de animais, e respondeu “vou matar a galinha então!”. Aí eu fiquei quieto, bom, já tinha salvo um cavalo, na minha cabeça aquilo valia por pelo menos umas várias galinhas, eu que não ia ser o pacifista entre aquele psicopata mirim e a vontade dele de matar animais e exibir para os outros. Seguimos ele até próximo dos puleiros das galinhas, nisso o fazendeiro nos viu gritou varias coisas, nos abaixamos na grama como se fosse adiantar de algo, ele soltou dois pittbulls atrás da gente e esse foi o dia que eu mais corri na minha vida até hoje. Eu, o cavalo, e as galinhas, todos vivos por algum milagre da graça.

Aqui um caso interessante sobre cavalos: existe uma coincidência histórica que aponta que cavalos deixam as pessoas malucas. Não todas as pessoas. Algumas. Bem específicas por sinal. E não é bem os cavalos… Mas enfim, primeiro há de se lembrar de Roskolnikov, protagonista do livro Crime e Castigo de Dostoievski, no livro ele tem um sonho recorrente que rememora uma tragédia de sua infância, andava com o pai rumo ao cemitério da vila quando ao passar por um bar sai de dentro do estabelecimento um grupo de bêbados, alguns homens e umas raparigas, sobem eles na carroça de um fazendo a algazarra toda, e como é muito peso o magro e surrado cavalo não da conta de fazer a carroça andar, o bêbado que tem as rédeas e o chicote na mão fica bravo, começa a chicotear mais ainda o cavalo que não sai do lugar e todo o bando ri com a cena desgraçada, o bêbado surra mais ainda o cavalo, que não se mexe; Roskolnikov fica horrorizado com a cena, embora seu pai não demonstre o mesmo horror, e sim indiferença. O bêbado após tanto surrar o cavalo às gargalhadas daquele grupo de doidos por fim pega um machado e golpeia a cabeça do cavalo, que enfim cai no chão. Roskolnikov então não se aguenta, não consegue ser indiferente junto ao seu pai, sai correndo em direção ao cavalo ensanguentado e o abraça chorando. Um terror de pesadelo. É algo assim pelo que me lembro, li Crime e Castigo no ensino médio pra impressionar os outros adolescentes em como eu conseguia ler livros “grandes” então uma coisa ou outra pode estar errada, mas lembro de ler essas passagens e pensar “é por isso que não continuei amigo do Diego!” (um amigo meu de infância que era delinquente tal como aquele outro menino lá do canivete, e que gostava de atirar pedra nos cães aqui da rua). Mas essa não é a coincidência de que falava anteriormente, na verdade o fato curioso é que em 1889, uns 20 anos após a publicação de Crime e Castigo, Friedrich Nietzsche (o “pai da psicanálise”) estava em Turim na Itália e andava pela cidade quando viu um cavalo ser brutalmente açoitado pelo seu dono, ele então partiu pra cima do cavalo o abraçando, chorando, gritando, e por óbvio espantando o dono. Quando desgrudaram Nietzsche do cavalo ele já não falava mais ré com cré, teve um colapso nervoso, enlouqueceu de vez, e assim ficou até o fim da vida. Nietzsche esse que era leitor de Dostoievski e chegou a dizer que o autor russo era “o único psicólogo com o qual eu tenho algo a aprender”. Definitivamente, tanto Dostoievski quanto Nietzsche aprenderam algo sobre o sofrimento, ou pathos, palavra grega que significa “sofrimento, paixão, afeto” e também “uma experiência humana que evoca dó, pena ou compaixão”. E dessa mesma palavra vem a palavra “patético” que significa “capaz de sentir”, e que ironicamente nós usamos errado para se referir a algo ridículo. Na nossa linguagem a capacidade de sentir, ter afeto e compaixão se tornou patética.

É uma virtude glorificada da nossa sociedade ignorar a dor, não compartilhar dela, não sentir, e não ser capaz de ter pena. Disso não fui capaz pois até hoje cabe em minha barriga toda a dor do mundo, e o meu palpite é que Deus volta e meia se disfarça de cavalo pra ver se ainda vai ser abraçado, ou ser salvo de uma facada.

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