dissabor

Chivo Garcia
4 min readMar 16, 2021
arquivo pessoal 2021

Estou longe de ser a primeira pessoa a dizer “perdi a madrugada stalkeando uma pessoa que talvez nem exista” , mas possivelmente sou a primeira a dizer “perdi a madrugada stalkeando uma pessoa que talvez nem exista depois de tentar recuperar minha conta antiga do MU Online”

ou não, vai saber, muita gente confinada e nostálgica, essas coisas acontecessem

acontece que no começo da década de 10', uns bons mais ou menos 10 anos atrás, eu era um então adolescente, ainda verde de tudo

era pra mim uma época conturbada como se supõe, e eu tinha por hábito em tempos tão estranhos perder alguns minutos em bate papos online, para perspectiva é algo que no mundo real seria o equivalente a uma balada sem música, com as luzes acesas e povoada com exatamente o oposto do tipo de gente que vai a baladas. Entrei as primeiras vezes com amigos ou primos para dar uma zuada (palavra antiga que na época significava “ver as mamas de uma mulher cisgenero” ou algo do tipo), noutras vezes entrei sozinho pra realmente tentar conversar com alguém, era engraçado porém mais tarde perdi o hábito quando percebi que tinha gente muito problemática (no sentido jurídico do termo) nesses lugares, são becos esquecidos da internet dominados pelos mais estranhos fetiches e ironicamente pelas figuras mais desprovidas de tato social

numa dessas vezes que me arrisquei eu encontrei uma garota inexplicavelmente normal, a gente se estranhou nos primeiros momentos de conversa até engrenar e mesmo depois da primeira semana de papo por texto no skype (uma espécie de discord da época e que era o destino das conversas que davam certo nos bate papos ) os dois ainda desconfiavam de estarem sendo enganados pela existencia do outro… ela tinha poucos anos a mais do que eu, estava a terminar o ensino médio, era mais madura, estava tendo dilemas quanto a própria sexualidade, pra não dizer rica digamos que era “classe média alta” e vivia em uma grande capital litoranea do brasil. Em contraste eu ainda era imbecil e achava que seria hétero por toda vida, pobre no interior do paraná e com uma vida desinteressantíssima, mas putz, a gente papeava a veras

acredito que a gente manteve contato por um período de dois anos, só nos falávamos no skype e não tínhamos nenhuma espécie de vínculo amoroso, geralmente eu desabafava da minha vida pra ela e ela sobre a dela pra mim, e a gente se ajudava, trocava visões sobre coisas, histórias sobre roles… ajudei ela inclusive numa situação que ela estava de namorico com uma hoje atriz global que é melhor não mencionar por nome, mas que estudava no mesmo colégio que minha amiga… ela se tornou uma boa amiga, ficava feliz em saber os andamentos da vida dela, e estranhamente a gente tinha uma espécie de pacto não firmado sobre nunca pedir as redes sociais do outro, tudo que eu tinha dela além das fotos que ela me mandava em situações especificas era seu username, que era a junção de um apelido e um sobrenome

com o tempo ficou mais difícil para conversar, ela foi pra faculdade e depois foi morar sozinha, e aí demorava pra responder as mensagens, eu também comecei a me virar na minha vida real, festas, relacionamentos e vários outros tititis que formam aquela gosma juvenil que você próprio jura ser uma pessoa pronta. Em certo momento no início da minha vida de escritor, quando ainda escrevia pra impressionar os amigos de classe e não desconhecidos de internet, escrevi um texto pra ela nas folhas finais do meu caderno, era uma espécie de declaração de amor e saudade

hoje, pandemia a dentro, atacado por nostalgia tentei recuperar uma conta do MU Online, um MMORPG bem tosco no qual eu tentava ser bom, pra isso tive que entrar num email antigo, nesse email antigo, no skype vinculado, tinha ela nos contatos mas sem nenhuma conversa salva, decidi: agora vou achar ela. Já tinha tentado outras vezes mas apelido e sobrenome dela eram deveras genérico, e pra uma capital daquele porte saber a cidade não ajudava em nada no recorte, mas dessa vez eu iria fundo. Achei até o perfil pessoal da atriz global que ela pegava, e vasculhei todos os likes de fotos procurando, até em documentos do colégio dela eu procurei. Nada. Fui acometido do mesmo sentimento que tive ao que me afastei dela, também o mesmo período que chegou a TV a Cabo aqui em casa e eu vi muita MTV, e consequentemente Catfish. Sera se fui catfishado? Sera se não fiquei dois anos me abrindo pra um tarado com fetiche em dramas adolescentes, que estranhamente tinha 100 fotos de uma garota rica em situações muito casuais e conseguia inventar enredos mirabolantes pra me manter preso a ele?

de fato não sei, e o que me é mais estranho é que a memória dela se tornou em mim uma portinhola aberta para a imaginação de uma grandiosidade que nunca vivi, um lance meio um gossip girl brasileiro, mas também uma infinidade de rumos possíveis pra uma pessoa complexa e cativante, que me ajudou em um período confuso, que eu espero também ter ajudado, mas que sumiu nos algoritmos de seu nome falso. Eu não sei o que eu queria, se era voltar a falar com ela, ou só saber que fim levou, se um dia conhecer pessoalmente, ou se me aproveitar das conexões dela pra entrar na próxima trama de Walcyr Carrasco, se tirar a prova se realmente ela foi real ou não… Não sei, mas hoje fui dormir sentindo o gosto ruim da imaterialidade de uma amizade sem final. É um tipo de ânsia boa, uma memória sem sentido e doce, um caco de esquecimento em meio a geração dos HDs externos.

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