Condado dos arrombados

Chivo Garcia
6 min readMar 26, 2021
arquivo pessoal

Em março de 2018 escrevi um texto pra Rolê sobre a relação conflitante entre esquerda partidária e a esquerda dos movimentos sociais, e esse texto começava com uma menção à caravana que Lula fazia durante o início daquele ano, esse era o trecho:

Final de Março de 2018, Lula continua tocando sua caravana quase suicida em meio a territórios hostis, o oeste do sul do Brasil, terra de gente tradicionalmente conservadora e reacionária, lugar onde até nos melhores dias Lula seria questionado. E bem, hoje não estamos nem perto dos “melhores dias”.

Essa foi a caravana em que o onibus do PT foi alvejado a tiros, um tanto quanto próximo a mim pois como boa parte de vocês sabem eu, o autor desse e daquele texto, sou do oeste paranaense. E hoje vou falar um pouco não sobre o Lula, mas principalmente sobre como está a situação por aqui, três anos depois daquela caravana.

Na data de hoje (26) um siricutico movimentou a pequena Toledo, acontece que o Comitê de Resistência e Solidariedade Toledo-PR teve a iniciativa de ao amanhecer do dia fincar cruzes no Lago Municipal, ponto “turístico” da cidade, sendo essas cruzes para representar o luto pelos 300.000 brasileiros mortos pela Covid-19 e também em solidariedade ao luto das famílias e amigos que perderam alguém nessa pandemia. Ainda pela manhã a guarda municipal da cidade foi acionada pela prefeitura para remover as cruzes do local, os organizadores do ato começaram a filmar a situação e aí a coisa toda toma contornos ainda mais imbecis quando um sujeito calvo, de meia idade e trajando a camisa do flamengo começa a raivosamente arrancar as placas e a rasgar as faixas em solidariedade a vitimas com toda truculencia que seus bracinhos curtos permitem.

Fora o sujeito arrombado, deve-se notar nessa situação que ser arrombado aqui é uma política de estado, pois se não aparece esse cidadão infeliz ainda assim as cruzes seriam retiradas pelo próprio poder público que não entende o motivo de se lamentar trezentas mil pessoas mortas. Aqui se predomina a noção de que tudo que reafirme a existência da pandemia é feito apenas para contrapor o presidente da república Jair Messias Bolsonaro, o rei dos arrombados. O oeste do paraná representa o núcleo duro do apoio ao presidente, em poucos lugares do país o presidente é tão unanime quanto aqui, tanto que não é segredo a ninguém que em momentos de crise o presidente viaja a Cascavel, cidade vizinha a Toledo e que representa um dos maiores índices nacionais de aprovação as medidas bolsonaristas sejam lá quais forem. Diferente do que aconteceu ontem (25) na USP, quando o atual ministro de saúde Marcelo Queiroga enfrentou protestos sobre a gestão de crise do governo federal durante a pandemia, três semanas atrás o então ministro e também arrombado Eduardo Pazuello veio a Cascavel pois a cidade estava em colapso sanitário sem UTIs disponíveis e em iminente falta de oxigênio, lá foi bem recebido e inclusive demitiu o secretário de saúde da cidade e deu ordem de colocar no lugar um secretário que fosse favorável ao “atendimento precoce”, foi prontamente atendido pelo prefeito e hoje a cidade ainda está em colapso.

Aqui em Toledo, onde o “tratamento precoce” também é praticado em larga escala (com apoio de uma universidade particular e a associação de comerciantes e empresários local), toda sorte de absurdos propagados pela ideologia bolsonarista acontecem diariamente. Em retrospecto recente podemos citar as carreatas de SUVs contra o STF ou as manifestações pela abertura total do comércio que nunca foi totalmente fechado e a abertura das escolas, mas se fizermos um resgate histórico vamos encontrar ainda mais absurdos que seriam aplaudidos pelo presidente, como o espancamento de LGBTs em conveniências em que procuraram culpar apenas as pessoas LGBTS, policia perseguindo e matando jovens periféricos sem motivo, policia sufocando e deixando na UTI jovens que estavam tendo um lazer numa área periférica, pessoas que procuram ajuda quanto ao desaparecimento dos filhos e são julgadas como maus pais e mães, e uma lista sem fim de absurdos que passam impunes pois o senso moral, jurídico e militar da cidade é o bolsonarismo mesmo antes de Bolsonaro, já que o bolsonarismo é o empoderamento da mentalidade chucra e preconceituosa que muitas vezes impera nos interiores do Brasil, é a validação de uma tradicionalidade tóxica.

A situação provavelmente não é diferente nos interiores de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, São Paulo… Nos Estados Unidos existe em andamento um processo de mudança demográfica, em que a população dos grandes centros como California e Nova Iorque cresce exponencialmente e atrai a maior parte das atenções midiáticas e acadêmicas, e também esses centros são grandes redutos liberais (no sentido norte americano, isso significa de esquerda). Porém existe uma grande parte do país que se sente excluída nos interiores, em maior parte são brancos pobres que não se veem representados pelo discurso liberal e pela luta antirracista ou feminista, e esses foram abraçados e empoderados por Donald Trump. O fato é que o bolsonarismo tem grande semelhança com esse movimento em forma de amparo aos habitantes esquecidos do interior do Brasil, e diferente do que aconteceu lá nos Estados Unidos aqui não temos tanta certeza que esse sentimento vai se dissipar caso Bolsonaro perca as próximas eleições, pois em comparação com os norte americanos nos temos uma capacidade ainda menor de dialogar com o interior, historicamente a história brasileira é contada das capitais e para as capitais, quase ninguém aqui no interior efetivamente lê a Folha de São Paulo.

Com o advento das mídias sociais uma camada mais jovem da população tem sim a noção de tudo que está acontecendo, há também uma ínfima camada de acadêmicos e uma boa parte dos adultos trabalhadores e ou periféricos que historicamente votavam no PT que engrossam o caldo dessa tímida e escassa oposição. Mas a mídia aqui é dominada por portais de noticias locais e pequenos jornais antigos, ambos extremamente aparelhados pelo baronato do agronegócio e pelas oligarquias familiares que dominam essas terras desde sempre. Por mais que a “elite intelectual” da extrema direita aqui se resume a rotarianos endinheirados que fizeram fortuna da especulação imobiliária e meia dúzia de pastores que gostam de atenção, toda essa ideologia tradicionalmente propagada é uma armadura muito bem estabelecida que é quase intransponível, o bolsonarismo não chegou aqui, os interiores que fizeram o bolsonarismo chegar ao topo do país graças ao completo domínio financeiro e midiático que essas elites de arrombados exercem nos pontos esquecidos do país. É sempre bom lembrar, o país se faz do interior pra fora, e não ao contrário, o país é bem maior que o litoral.

O primeiro texto que mencionei no inicio dessa crônica faz parte da “Rolê”, uma revista colaborativa que tentei construir com alguns amigos anos atrás para criar uma ilha de bom senso aqui em meio ao condado dos arrombados. Não deu muito certo, mas ano passado construímos a Inimigos, uma revista que já teve duas tiragens e está dando certo sim. Não só eu estou nessa luta, sei de vários outros jovens que também tomam partido pela sensatez nessa silenciosa guerra que existe no interior do país, ao lado sempre dos trabalhadores, esses sim os afetados pela pandemia e não o ego frágil do presidente inútil que ia ficar magoadinho vendo algumas cruzes, mesmo que a família dele esteja comprando mansões e não penando nos hospitais. Gostaria de prestar solidariedade novamente a todos que perderam alguém nessa pandemia, mas principalmente queria descer ao nível daquele careca flamenguista e dizer especialmente a ele, para o poder público local e todos que acham que o que você fez foi certo: vocês são uns arrombados.

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