Brutalmente honesto.

Chivo Garcia
7 min readFeb 8, 2023
retrato de Thiago Chivo por Luiza Faquinello

Existe uma concepção equivocada sobre mim, mas que em parte eu mesmo ajudei a criar. Se você não me conhece a fundo parece difícil crer que apesar da minha reputação eu na verdade sou uma pessoa muito tímida e quieta, não gosto de multidões, nem de muito barulho. Eu sou calmo, extremamente calmo. Eu lembro que constantemente falavam isso sobre o eu criança, “Como pode esse garoto ser tão calmo?” “Ele é sempre tão quieto assim?’. Eu passava o dia todo em frente a TV, as vezes passava o dia todo sem dizer uma palavra, a não ser quando precisava responder algo para minha mãe. Já meu irmão em contrapartida era o completo oposto, hiperativo, falante, brincalhão, da fuzarca.

Eu percebi desde muito cedo que era pobre, também não precisava ser um gênio para notar. Chão de vermelhão, paredes de madeira, roupas doadas, não podia ir no mercado junto com meu pai, nunca podia ir junto comprar meus sapatos, não tinha brinquedo pro dia do brinquedo. E nessas eu lembro de cair muito profundamente num daqueles clichês iniciais da vida escolar que as professoras do pré-escolar recitavam:

“a única coisa que não podem te tirar é o seu conhecimento”.

E pra mim era lógico, já que eu sou um fodido me resta ser a pessoa mais inteligente do mundo, e na TV eles falavam que as pessoas mais inteligentes do mundo eram os cientistas, que clonavam ovelhas e coisas do tipo. “Eu vou ser um cientista!”. E sabe, poderia ter dado certo, se tivesse dado tudo certo. Por anos e anos eu não precisei frequentar os últimos bimestres da escola porque eu já estava aprovado no terceiro, e se fosse matematicamente possível eu tenho certeza que conseguiria os 240 pontos em 2 bimestres, e conseguiria assim mais tempo ainda pra ficar em casa vendo TV, quieto, na minha. Eu sabia que tudo que eu me dedicasse eu iria dominar, as vezes o começo era difícil, mas nunca senti como se nada fosse impossível.

Tudo mudou quando meu irmão foi assassinado. Toda a minha vida e a minha família se encheram de uma tristeza e uma apatia tão maçante que eu não ligava mais pra ser inteligente, eu só queria ser amado. Mas as pessoas não gostam muito de nerds, principalmente os que são quietos. Foi aí que a minha vida escolar começou a degringolar, eu não via mais sentido em me dedicar a ser bom naquilo, eu queria fazer as pessoas rirem, serem minhas amigas, ficarem felizes comigo. E nisso eu fiquei muito bom, modéstia ao caralho eu me tornei uma bem pessoa engraçada, eu conseguia falar de um jeito que as outras pessoas não conseguiam, eu conseguia ver o que pra elas demorariam horas pra notar e cada vez mais eu fui me tornando alguém falante, brincalhão, da fuzarca e até hiperativo. Com o passar do tempo inconscientemente eu tentava cada vez mais me tornar o meu irmão, não sei se pra suprir a falta que eu mesmo sentia dele, ou a que meus pais sentiam. Não era de todo positivo, pois eu não queria só ser a parte boa, eu queria também ser um traficante como meu irmão, eu queria ser um viciado como meu irmão e eu queria até mesmo morrer como o meu irmão, já que ele nunca foi tão amado quanto quando ele partiu.

Depois da minha infância o único traço que me restou da minha vida aplicada aos estudos foi ler, nunca parei de ler, e então no ensino médio eu já tinha vários amigos, lia muito, não sabia fazer contas e nem formulas. Ler definitivamente salvou a minha vida, escrever salvou a minha vida, se não fosse isso eu provavelmente teria entrado pro crime como boa parte dos meus amigos de infância e primos (e como eu mesmo entrei por um tempo mas isso é história pra outro dia). Nas matérias de humanas como história e sociologia eu ainda era aquela criança que seria o cara mais inteligente do mundo, afinal só bastava ler, e eu já havia lido os livros de sociologia do ensino médio enquanto ainda estava no fundamental, aquilo não era nada pra mim, eu queria fazer mais. Ainda no ensino médio comecei a frequentar as reuniões do Espaço da Diversidade (entidade LGBT da cidade), comecei a me envolver com militância política, e pela época do terceiro ano do ensino médio eu junto da minha namorada da época organizamos a ocupação do nosso colégio durante a primavera secundarista, comecei então a ter cada vez mais contato com jovens que eram como eu, que falavam muito bem, liam muito e não sabiam fazer contas. Comecei a conhecer as pessoas da faculdade, fiquei amigo de pessoas que cursavam Ciências Sociais, e meu Deus era perfeito! Afinal de contas eram cientistas que não faziam contas (eu achava isso até entrar no curso e ver que precisava fazer várias contas).

Eu nunca me senti tão a vontade quanto me senti na faculdade, eu estava rodeado de pessoas que como eu não se limitavam a ver o mundo e criticar, elas tinham a necessidade de mudar as coisas ou construir o que ainda não existia. A partir dali eu amadureci muito socialmente, politicamente e com muita base teórica para tal, ao passo que existia em mim uma confiança tremenda de que não existia nada que a gente não pudesse mudar ou construir. Movimento estudantil, atos, manifestações, protestos… Comecei a ser reconhecido por pessoas da política, do governo, a frequentar reuniões sérias e nunca em nenhuma delas eu me senti menor do que alguém que ocupava a mesma sala.

Foi assim que começa a história do Bloco do Chivo, nesse período de extrema confiança, disposição e preocupação social. A gente reconstruiu o carnaval aqui, porque nunca sentimos que não dava pra ser feito; a gente tinha a base teórica, politica e social para tal, e não tínhamos pânico de nada. Construímos e eles vieram.

E não foi até pouco tempo que parei pra refletir sobre isso, na verdade fazem poucos dias: estava em um bar com um amigo e ele perguntou de verdade como eu estava, disse ele que se sentia preocupado porque sentia que eu sempre puxava um peso e uma responsabilidade enorme pra mim, e que se eu não quisesse mais fazer isso estava tudo bem. Aquilo me atingiu de um jeito diferente, eu nunca pensei que eu tivesse uma escolha. O curioso é que ao começar a ser chamado de “Chivo”, fazer festas chamadas “Chivadas” e o próprio “Bloco do Chivo” se atrelou a mim uma ideia folclórica sobre quem é o “Chivo”, uma ideia que pensando em retrospecto tem muito mais a ver com o que eu observava do meu irmão do que de mim mesmo, e que deixa mais doida a coisa toda. Porque muita gente acha que eu sou um maluco, festeiro, extremamente egocêntrico e inabalável, e em parte eu sou isso sim, mas o sou porque desde muito antes de ser chamado de Chivo eu já carregava em mim duas vidas, duas pessoas, duas almas, bastava apenas dois nomes.

Mas quando meu amigo me pediu aquilo eu lembrei de ser uma criança calma e quieta, e que atualmente é o centro de muitas atenções e que tem que ouvir muita merda. Ouço recentemente que nós da organização estamos fazendo o carnaval pelo dinheiro (mesmo explicando o porque hoje somos persona non grata pelo poder público, o que é pra mim até motivo de orgulho e sinal de reconhecimento). Mas é a mim particularmente doentia a ironia de ser visto como um aproveitador quando volta e meia eu e minha mãe temos necessidade de conversar sobre não saber como vamos pagar nossas contas e como iremos fazer o mercado da próxima semana. Não faz muito que tive que expulsar meu pai de casa, ameacei matar ele com uma garrafa de whisky depois que machucou minha mãe fisicamente depois de anos a machucando emocionalmente. E fiz isso sem ter a menor ideia de como iriamos nos manter sem ele. E independente de qualquer falta de recurso, faria o mesmo todo dia se fosse preciso. As pessoas não tem ideia do quanto eu não valorizo dinheiro. E assim vejo que se criou um imaginário de quem é o Chivo que é passível de todas as críticas que existem, pois para a maioria não é uma pessoa real, se tornou um personagem dotado de várias características vis que lhe queiram aplicar; eu me tornei uma vitima de ser a dualidade na qual eu cresci e me criei sem nem ter conscientemente escolhido isso. E críticas destrutivas vindo de quem nunca construiu nada me fazem pensar em porque diabos me tornei uma pessoa dessas que vai e faz as coisas. Mesmo com tanta base teórica, tanta boa intenção, tanto esforço e tanta história já construída nunca seremos capazes de escapar do equívoco dos outros. Mas eu entendo meu amigo e sua preocupação, pois ouvir essas coisas, essas certezas maldosas que eles tem sobre alguém que não conhecem machucam, não o Chivo, mas o Thiago que só queria ficar quieto vendo TV no seu canto, sem arrumar problema.

Independente de tudo, meu nome é sim Thiago Chivo, e nesse ano eu viro cientista.

retrato de Thiago Chivo por Luiza Faquinello

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