Chivo Garcia
6 min readDec 4, 2020

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A vida não vale uma entrega - #1 A Dama e o cachorrinho

Era próximo ao meio dia e o movimento intenso já estava sufocante, Maicon voltava de uma entrega de marmitas que faz na BR a uns operários que trabalhavam em obras da rodovia, a claridade do sol alto queimava o corpo por dentro das roupas, e o vento veloz era o único auxílio para continuar a jornada. Ainda que por hora ele podia aproveitar de um pouco de espaço, antes de voltar a cidade e suas ruas estreitas cheias de pessoas estressadas e famintas. Todo tempo era pouco, todo momento era de correria e toda contemplação era nula. Assim como ele vários outros se encarregavam de acelerar para que o horário do almoço chegasse no mesmo horário de sempre, um movimento que pra uns era natural, mas que para quem bem olhasse se daria conta de que era mecânico, o dia era puxado pela tração das motos.
 Alheio a essas reflexões Maicon entrou de volta na cidade, já fazendo os cálculos de quanto dinheiro iria conseguir fazer naquela jornada. Mas o acaso o obrigou a parar quando estava na avenida, passando pelo início do primeiro bairro viu na pista um borrão andando em direção à trajetória da moto, até tentou desviar do cachorro, o cachorro quando se deu conta tentou desviar da moto também, ambos não conseguiram. O bicho que tentou voltar de onde vinha foi atingido pelo pneu dianteiro na barriga, acima das patas traseiras, Maicon se desequilibrou e quase caiu mas conseguiu se manter, parou a moto e olhou para trás. Por algum instinto que fugia da realidade do relógio decidiu encostar a moto e ver o estado do animal, atitude incomum. O cachorro se arrastou próximo ao barro de onde deveria existir uma calçada, sangrava pela boca e chorava baixo, confuso, assustado. Maicon sabia que não tinha a menor chance de salvar aquele cão, mas estava particularmente incomodado com aquilo, e decidiu sem muito "pra quê" que iria se importar. Talvez compaixão, talvez culpa, ou talvez só se viu em um instante fora de sua rotina de pressa, sem capacete.
 Em um ato grosseiro de misericórdia golpeou na cabeça com uma ferramenta o cão que penava a morrer. O tomou em seus braços, e procurava um lugar melhor pra dar um fim respeitoso ao cadáver quando virando a esquina a procura de algo vinha uma alta mulher de pele retinta, que se fazia ainda mais alta pelo salto que usava, vestia uma camisa branca surrada e desbotada e uma bela saia, em uma esquisita combinação de volúpia e modéstia coroada pelo tecido de renda que levava às costas. Ela gritou e Maicon se viu paralisado, realizando que era ela a dona do cachorro, e quando ela chegou correndo até ele não conversou muito, de ímpeto tomou o cachorro e se ajoelhou chorando murmurando o nome do animal. Maicon já pensava no problema desnecessário que tinha se metido, no atraso das entregas, mas foi aí que Carla, uma travesti de 32 anos que ainda não havia revelado seu nome, o surpreendeu com calma, pedindo:
"Foi você que pegou nele?"
 Ele assentiu com a cabeça.
"Você não se acidentou não, né moço? Olha você me desculpa, o pessoal que mora na casa da frente deve ter deixado o portão aberto" - Falava rápido em meio a soluços.
 Maicon assustado com a cordialidade finalmente se sentiu a vontade para falar.
"Ele tava no meio da avenida, eu até tentei desviar mas acabou pegando no meio dele… Encostei a moto ali do lado e vim aqui ver… Aí… Ele já tava morto aqui, eu ia colocar ele em algum lugar melhor"
 Ela tornou a agradecer a atenção que deu ao cão, era dotada de um estranho entendimento das fatalidades da vida, ainda chorava mas conformada. Ele estava confuso, foi atingido por uma situação que não esperava, e tentava não ser grosseiro ao reparar nas grandes mãos dela. Apesar de não ser tão jovem, Maicon já tinha passado dos 25 há algum tempo, sempre carregou consigo uma timidez que o impedia até de ser preconceituoso, apenas não gostava de ser incomodado e de incomodar pessoas, quaisquer fossem os motivos. Se lembrou que ainda tinha de voltar a trabalhar, e comunicou isso, mas ela pediu uma última ajuda, e não longe dali ele cavou o buraco para sepultar o cachorro. Ela morava em uma casa de fundos apertada e precária, que lembrava em muito a casa dele, também de fundos e precária.
"Eu tenho que ir agora… Desculpa de novo pelo dog." 
 Ela apenas balançou a cabeça negativamente com um sorriso, como de quem diz não foi nada. Ele, num desajeitado ato de despedida entregou o seu cartão
"O número de baixo é o meu, se precisar algum dia."
 Quando voltou a estar em cima da moto atravessava a cidade pensando inquieto naquele encontro, não tinha muitas pessoas com quem conversar fora do trabalho, e certamente não ia falar sobre com os outros motoboys com medo de ser chamado de bicha ou algo do tipo. Ele mesmo estava com medo de se chamar de bicha, ao que tentava esquecer o estranho magnetismo daquela figura, que tinha os traços do rosto fortes e já com marcas, porém ao mesmo tempo carregava uma doçura incomum, como o véu de renda às costas que mesmo frágil lembrava-o de escamas, sentiu uma simpatia que desafiava o que ele mesmo sabia de si, mas que não tinha tempo para entender.
 A noite ele fazia outra jornada, agora em uma pizzaria modesta do centro, com fome esperava o cozinheiro fazer a pizza dos entregadores, esperando também que fosse um sabor sem catupiry. Odiava catupiry. Porém teve a espera interrompida.
"Maik, 3 gigante no Santa Clara IV"
 E então ia novamente às ruas, tentando ganhar pra si mais minutos. Quando próximo até estava um pouco perdido, pois era um daqueles bairros de casas de projeto do governo que são todas iguais, porém o som alto denunciava que era provavelmente naquela casa de cercada por grades de lata que precisavam de 3 pizzas gigantes.
 Quatro jovens saíram da casa pra receber a entrega.
"Ficou 170 com o refri" - Disse Maicon, e já puxava a maquininha de cartão quando viu que um deles olhava as caixas e disse sério mas quase em tom de deboche:
"Os sabor tão errado, a gente num vai pagar não"
 Seu corpo gelou, estava irritado e frustrado, percebendo o golpe tentou uma saída para não levar um prejuízo que tiraria quase todo seu dinheiro da noite "Então eu vou pegar elas e trocar lá" 
 Outro dos meninos gritou "A gente não vai pagar mano, vaza" e o empurrou, tentou subir na moto, mas foi cercado, derrubado novamente com gritos de vaza, e dois dos garotos apontavam um 38 em sua direção. Estava humilhado, triste e com uma raiva do tamanho da maior das avenidas do mundo, se não fosse as armas poderia até espancar todos aqueles adolescentes munidos da arrogância do ferro.
 Mandou mensagem no grupo dos motoboys no whatsapp, e um deles acabou dando carona até sua casa, e já vislumbrava que no dia seguinte teria que fazer B.O, e quem nem sabia se ia resultar em algo, provavelmente aqueles garotos nem moravam naquela casa que provavelmente era de algum viciado, a moto já estaria em alguma biqueira ou matagal aleatório, chorou dormindo por terem tirado de si até o trabalho que tanto odiava.
 Acordou com o celular tocando, e se assustou ao reconhecer a voz firmemente feminina de Clara. Atravessou a cidade de moto táxi e encontrou ela, que o conduziu até um lugar incomum no final do bairro dela, no final da cidade, um pico em que já se via os campos de soja que roubavam do horizonte o infinito.
"Eu desço pra cá às vezes fumar um perto do rio, é bonito… Mas os menino da biqueira acabam escondendo as moto roubada aqui por perto, eu acabei notando uma moto parecida com a sua… E eu tinha meio decorado sua placa porque te achei gatinho" - riu, e levou Maicon até onde estava sua moto, e então acendeu um cigarro.
 Ele achou bonito como ela fumava, embora ele nunca tivesse tentado fumar, ou pensando em tentar fumar. Não tinha tempo. Se viu por um momento em meio às cores das folhas que balançavam gentilmente com o vento e caiam manhosas ao chão, o sol que entrava com calma entre as árvores e iluminava os negros cabelos de Clara e refletia na lataria de sua moto, pode então ter tempo, e perceber que mesmo naquela cidade suja, mesmo entre pessoas decadentes, a arrogância do sol não só queima, mas pode iluminar a todos.

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