a quem dança toda glória

Chivo Garcia
6 min readMar 25, 2024

quem me conhece sabe que é dificil me tirar do sério, sou uma pessoa bem razoavel e amigavel em boa parte do tempo, tive uma criação muito diplomática. logo depois de terminar a quarta série me mudaram de escola e tive de estudar no centro já que meus pais tinham medo do que ia acontecer comigo se continuasse estudando no nosso bairro, então eu tive que lidar com muita gente que pensava que era rica e culta, mas sempre levei numa boa e me adaptei. na epoca da faculdade fiz amizade com o pessoal de jornalismo de uma particular, gente bonissima, mas não era incomum a gente acabar nuns roles estranhissimos com espumante em beira de piscina e banheiros que tinham lembrancinhas de areia de porto seguro, saca aqueles vidrinhos de artesanato que tem uns desenhos na areia? uma graça

dito isso já sabia como funcionavam as coisas, os insultos velados em piadas, indiretas passivo agressivas, aquela tendencia de curtir ironicamente coisas do “povão” tipo achar engraçadissimo colocar cheia de manias pra tocar no role, vai entender… não me incomodava com isso pq eu mesmo era descolado da minha realidade e da minha identidade, só foi lá pro segundo ano da minha faculdade que fui me tornar amigo de pessoas que tinham realidades e vivencias parecidas com a minha, daí em diante se tornou muito mais claro e desconfortavel o choque de mundos, tipo perceber que boa parte das pessoas que eu conhecia eram elitistas, boa parte dos caras eram bem homofobicos e machistas, ainda não tinha entrado na moda ser “meio-bicha” e uma pessoa boa. nessa epoca eu só tava colando com viado pobre então imagine. foi ai que comecei a pegar raiva dum termo em particular: “pelego”. aqui por essas bandas pelego não era usado no sentido sindical da coisa, era mais uma giria pra se referir a gente pobre “sem classe”. me falaram esse termo umas 4 vezes na minha vida, e uma dessas foi no role que vos conto aqui hoje.

a gente sempre andava em um pequeno bando, eu, minha melhor amiga, uns 3 ou 4 amigos da minha turma de ciencias sociais e uns perdidos da noite que a gente acolhia, sempre na minha scenic 2002 que dava problema a cada duas semanas e abrigava muito honradamente 8 pessoas. estavamos de bobeira na noite até que eu recebi um convite de um amigo para uma “social” na cobertura do prédio que a familia dele morava, ja mais ou menos bebado nao vi nenhuma razao pra preocupaçao mas falei que talvez nao colaria pois estava com uma galera, “pode colar tambem” foi a resposta, era a brecha que o sistema queria. nessa epoca a gente ouvia muito black alien e funk paulista. chegamos la, meu amigo desceu no terreo buscar a gente, vale dizer um otimo sujeito inserido num pessimo ambiente. no hall de entrada ja avisara pra gente nao fazer esparramo por causa dos vizinhos, ja devia ter percebido aí a furada. chegando na cobertura pedimos se era de boa bolar um ali, a gente também não é maluco ne, vai saber. “po claro, suupeer de boa” kkkkkkkk

eu conhecia boa parte dos presentes, alguns ali eu inclusive ja tinha vendido pra eles maconha ruim misturada com kumbaya à preços exorbitantes. mas devo dizer logo de inicio, um clima bizarro, tava tocando yung lean ou algo sadboy desse tipo, eu até gosto mas em festa é meio bad… as pessoas estavam em rodinhas sentados em cadeiras, percebi que era um ambiente hostil pros meus amigos de fora. era muita foto pro snapchat, gente se referindo aos outros pelo sobrenome e pouquissima festa de verdade. mas foi a gente bolar uns que logo vieram alguns curiosos se enturmar, aí começou o show de horrores, um muleque vestido de indie foi puxar papo com a gente falando de tarantino e donnie darko como se fosse o santo graal do cinema, e no nosso grupo a maioria entendia bem de filme, livros a porra toda, mas na percepção dos cara de calça dobrada eles estavam trazendo a luz até nos com esses papo de pegar as mina de franja desavisada. logo ficou pior, como a gente tinha até que se enturmado tomei a liberdade de colocar umas musicas na playlist, uns funk paulista um black alien, pra dar uma chacoalhada no ambiente. minhas amigas se animaram e foram dançar, e aí o resto da “festa” começou a olhar pra nós como se fossemos doidos, perceba que a timidez dos covardes se valhe da noção de classe e postura pra diminuir quem tem ritmo, uma inversão de valores que eu acredito que fora arquitetada por quem tem cintura dura e gel no cabelo.

quando fiquei mais a sós com as figuras cinefilas um deles diz que parou de ir em certo bar, o bar que a gente mais dava role, pois “tinha muito pelego”… junto a mim com muito orgulho estava meu amigo daniel, que quando bebia tinha pouquissima noção de deixar as coisa passar, e soltou um “mas ai quem ta sendo babaca é voces”, e foi notória a falta de reação daqueles que nunca pensaram que ouviriam alguem falar na cara deles uma verdade. Daí pra frente as coisas foram degringolando ainda mais, nessas ja tinha abandonado as pretensões de fazer a festa dar certo pra todos, metade das pessoas ali estavam com raiva da gente e a outra metade tentava muito fingir indiferença, então o que nos restava era aloprar. minha amiga mais maconheira me chamou de canto e disse quase que brincando “a gente tem que roubar esses playboy”, eu ri bastante. estava meio deslocado pois estava ao mesmo tempo sentindo vergonha de estar sendo julgado por um bando de gente sem graça, e estava constrangido por ter colocado meus amigos naquela arapuca. ouvimos toda sorte de absurdos naquela noite.

tentando fugir do confronto fui com minha melhor amiga animar uma partida de truco, e encontramos dois outros caras que sabiam jogar, pensei que seria a salvação, nessas fiz dupla com um mineiro endinheirado que so falava os maiores absurdos machistas pra provocar a minha amiga durante o jogo. disse algumas outras asneiras, falou mal de quem usava tenis falso como se fosse uma preoucupação legitima. meu tenis era falso. falou que era coisa de pelego.

terminei o jogo, ja sem muita paciencia desci pro banheiro do apartamento, me olhei no espelho sem saber ao certo que espaço eu ocupava naquilo tudo, perto da pia tres pequenos frascos de vidro com areia pintada, lembranças de jericoacoara. voltei de volta pra blasélandia decidido, compensava mais beber numa praça deserta do que esperar que uma faisca de felicidade surgisse daquela patacoada. abordei meus amigos e disse o plano, eles aliviados concordaram. por aquilo que se vale e se é pra fazer valer o risco é preciso entender quando se encaixar é se perder, ao longo da minha vida fui percebendo que quanto mais dinheiro geralmente pior a qualidade dos roles e das conversas, existe menos verdade nas falas e todo um mundo de agressões suaves que deixam todo mundo ali numa guerra fria que supostamente era pra ser agradavel, é gente que se perdeu tanto na vontade de querer parecer ser algo que esqueceu que sobrenomes e marcas contam muita pouca coisa no mundo real. me arrependi do tanto que durante minha adolescencia tentei me encaixar nesses roles, tentando sempre avançar de nivel pra uma festa mais cara e mais exclusiva. inacreditavel que depois quando comecei a fazer as minhas festas essas pessoas apareciam e tentavam ser como a gente, achando que a gente nao tem memoria.

recentemente, numa dessas uma mina fez um tiktok reclamando que nosso bloco de carnaval tinha muito pelego. “e é pra ser assim” pensei. mas esse tipo de gente que se incomoda agora já nao tem mais as cara de falar na cara.

não sai da social antes de lavar as mãos e alma, disse pro mineiro do truco que o tenis dele era horrivel e ele era babaca. na mochila levei duas vodkas da geladeira e tres frascos com a areia de jericoacoara.

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